Imagem de Gabriel Jardim do blog  Ofensiva Negritude
Imagem de Gabriel Jardim do blog Ofensiva Negritude

Os maiores genocídios da história da “humanidade” são os genocídios dos povos africanos e dos povos das américas, sim? Já duram mais de 5 séculos. Os primeiros foram dizimados em suas próprias terras e aqui “nas terras alheias”, os segundos foram dizimados dentro de suas casas. Em nenhum dos casos puderam pedir abrigo em outros países como forma de fugir do genocídio. Diferente dos povos europeus que desde a colonização europeia nos dois continentes, encontram abrigo ambos.

Esses genocídios acontecem/aconteceram em benefício da supremacia dos povos brancos. O racismo contra as populações indígenas e negras existe porque os povos brancos europeus se julgavam acima de qualquer outra civilização. Dizimaram famílias, culturas, identidades, deslocaram territorialidades, porque os corpos indígenas e negros lhes pertenciam, segundo seu julgamento. Os colonizadores europeus reduziram o mundo às suas verdades, aos seus conceitos, às suas categorias. As tecnologias, os conhecimentos, as sabedorias dos povos dizimados foram ignorados. O mundo foi então separado entre “privilegiados” e “subjugados”. São mais de 500 anos sendo “donos do mundo”. E nós sempre soubemos que esses europeus eram compostos por portugueses, espanhóis, franceses, alemães, italianos, ou seja, suas particularidades sempre estiveram à vista, sempre foram múltiplas as suas identidades. Mas reduziram africanos e americanos em “negros” e “índios”, tirando as identidades de ambos os grupos e os inserindo em uma só categoria que afirmava “preto quando não caga na entrada, caga na saída” e “é tudo índio, é tudo parente”.

No âmbito das mulheres no Brasil, por exemplo, enquanto em 1827 era criada a primeira escola de “educação feminina” que reforçou ainda mais o estereótipo de “ser feminina” entre mulheres brancas (algo péssimo, lógico), só em 1871 foi promulgada a tal da lei do ventre livre, estabelecendo “liberdade” para filhos de mulheres negras escravizadas nascidos a partir desta data. Em 1888 a tal de lei áurea foi assinada dando fim à escravidão colonial e dando início à escravidão moderna.

Tudo isso é sobre branquitude. Nada disso é sobre negritude ou sobre indígenas. Mas “tudo bem”.

Quem nasceu de pele branca, reconheça ou não, traz no seu corpo as marcas de uma memória, de uma história. Traz consigo a herança de fazer parte do grupo que há mais de 500 anos tem sido beneficiado pelas explorações e dizimações aos outros grupos. Chegamos a uma era de tecnologias, conhecimentos, musicalidades, comunicações, vestimentas, gastronomias dominadas por pessoas brancas em um Brasil com mais de 50% negra e/ou parda que, inclusive, veem suas pessoalidades em negociações capitalistas dominadas por pessoas privilegiadas.

Mas assim como várias vezes ao longo da história desses massacres europeus em terras negras e indígenas os dois povos insurgiram, lutaram, guerrearam, desde a década de 1960 as insurgências negras tem crescido e tomado volume na África, na Europa e na América.

Corta. Pula aí pra 2016.

Agora sim, (um pouco) sobre negritude.

As insurgências negras tem alcançado diversos campos tradicionalmente de dominação branca. As ruas, os partidos políticos, as universidades, a internet, as estantes literatas. Por força dessas insurgências temos visto cada vez mais pessoas negras dispostas a “guerrear” em prol de nossas verdadeiras histórias e nossas verdadeiras memórias. O que buscamos é reparação histórica. Fomos proibidas de estudar, de ler, de falar, de viver. E se não nos insurgimos, os espaços não nos serão dados pela supremacia” branca, isso é história.

E a certeza de que essa supremacia está em voga até hoje, é que pessoas brancas em geral, podem falar e fazerem o quiserem porque historicamente nunca foram impedidas disso. As pessoas brancas sempre tiveram suas identidades tão respeitadas que hoje quando nos referimos as “pessoas brancas”, muitas tomam isso como algo indivualizado, como algo particular. Porque vocês não tiveram que ser racializadas e vistas como “grupos homogêneos”. Quando nós, negras abrimos a boca, insurgindo, sempre aparece uma pessoa branca para dizer que “não podemos falar assim”, que “não podemos” generalizar e colocar todas as pessoas brancas como inimigas, dentro do mesmo “balaio”.

Opa. Mas eu disse que ia falar sobre negritude agora. Mas afinal de contas eu nem sei se já aprendi a falar apenas sobre negritude, visto que a branquitude se sente ferida por buscarmos nossas matrizes. Aí pá, me pego escrevendo para pessoas brancas, ao invés de investir meu tempo apenas em pessoas negras, que são as pessoas que me interessam.

Vou tentar de novo.

Negritude. Cada vez mais a resistência negra está jovializando, digamos assim. As pretas velhas estão conseguindo deixar marcas fortes o suficiente que hoje vemos crianças, adolescentes, adultas … buscando referenciais que lembram a si mesmas tanto em aparência, como em vivência. Já está favorável? Não, ainda não. As pessoas brancas se incomodam e atrapalham nossas insurgências. Conseguem até hoje colocar negras/negros em lados opostos, como se fossemos inimigos de nós mesmos. Isso acontece na concordância e discordância sobre cotas, sobre identidades, sobre que armas devemos usar para guerrear, sobre que espaços podemos/devemos ocupar, sobre o que significa representatividade para a gente.

Ouço pessoas brancas dizendo que são aliadas do movimento negro há anos, como forma de se legitimar anti-racistas, mas não leem uma linhazinha do que escrevemos e ainda se incomodam com nossa insurgência. São pessoas que lutam por uma “humanidade” sem separatismos. Que acreditam que o que nos une é mais forte do que o que nos separa. Desculpem dizer, eu sei que vocês não gostam de ser contrariadas, mas seguir por esse caminho só reforça que vocês não entenderam foi nada.

Quando uma pessoa negra usa a expressão “as pessoas brancas” e isso gera um tumulto entre pessoas brancas, só mostra como o discurso de vocês é raso, sem aprendizado, falacioso, ganacioso e que vocês ainda não conseguiram romper com a histórica supremacia que os ancestrais de vocês impuseram-nos. E vocês tem tanta certeza de que não precisam estudar ou ter vivência para falar sobre x ou y assunto, que não possuem o menor constrangimento para deslegitimar ou desqualificar a fala de uma pessoa negra. E estamos todas nós em processo de aprendizado. Porque 50 anos não são suficientes para sermos totalmente descolonizadas quando passamos mais de 400 anos sem direito de viver. Sem liberdade. Sem nada.

Ah mais vocês se apegam muito ao sofrimento e ao passado”. Dizem as pessoas brancas. Sim, precisamos lembrar cotidianamente que milhares de nossos antepassados foram executados para servir a branquitude. Mas como eu disse, estamos em insurgência. Então hoje sabemos quem foi Sojourner Truth e já sabemos que Cleopatra não tinha a aparência de Elizabeth Taylor. E isso nos ajuda a compreender que precisamos também cada vez mais de professores e estudantes negros insurgindo os currículos escolares e universitários, trazendo à tona debates que são silenciados, mas que nos custam a vida e a autoestima. Nós não somos um tema para o 13 de maio ou para o 20 de novembro, nós somos uma história, nós somos vivência, nós somos insurgência.

Vocês pessoas brancas não precisam negar sua herança escravocrata para parecerem anti-racistas, contra racistas ou nossas aliadas. É justamente reconhecendo que vocês são herdeiras de uma supremacia que poderão contribuir e reaprender que ontem, hoje e amanhã, suas dívidas são seculares. Não começou nem cessará em suas gerações.

Olha só eu de novo falando para as pessoas brancas. Quanta incompetência a minha para falar apenas de negritude. É porque a minha não memória negra é muito forte, eu não sei quem é minha ancestralidade africana, meu avô não sabe direito nem onde a mãe dele morreu, não sabe cadê seus irmãos, se estão vivos ou não. Como saberei falar apenas de negritude se a branquitude apagou nossas memórias?

O lugar de fala e o direito de falar sempre foi garantido às pessoas brancas. Vocês foram socializadas para falar em público, inclusive em vencimento ao sexismo imposto a vocês pela sociedade patriarcal. Mas nós, pessoas negras, nossos corpos não foram socializados para o protagonismo, o espaço público que nos foi dado, foi o da humilhação e subjugação. É compreendendo essa conjuntura que vocês conseguirão ser aliadas de pessoas negras e pessoas indígenas. Não é barganhando voz, não é barganhando protagonismo que vocês parecerão menos brancas ou menos racistas.

ps: Esse texto é mais um fruto de reflexão de conversas com pessoas queridas, negras, indígenas, não negras, brancas. E pra quem quiser aprofundar, vamos às conversas. =)

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